Momentos em missão…

O Catequista pai, Armando Capingana – Aldeia do Calipe.
Já levo muito dias em África. De Norte a Sul de África, de Oeste a Este já percorri muitas das suas paisagens, conheci muitos dos seus povos, muitas das suas religiões e muitas das suas diferenças.
Estas viagens começaram por ser um chamamento do espírito de aventura e da curiosidade de conhecer paisagens que via na televisão nos meus tempos de miúdo aos Domingos nos programas de vida selvagem da BBC e passaram a ser, após conhecer melhor este velho continente maravilhoso, um chamamento para trabalhar em missões humanitárias.
Desde que comecei a fotografar em 2004 percorri um caminho que me levou a passar dos safaris na Namíbia, Botswana, Tanzânia, ao mergulho no mar vermelho no Egipto, ás pistas do rally Paris Dakar de Marrocos e Mauritânia ao vale do Omo na Etiópia com as suas tribos e em busca de paisagens, espécies animais ou culturas exóticas, a de repente a percorrer as picadas do Burkina Faso, do Togo e da Guiné Bissau de aldeia em aldeia prestando cuidados médicos e auxilio humanitário. Uma mudança em mim e no significado das minhas viagens e dos objetivos para a qual fotografava.
Confesso que na minha lista de países a visitar ou trabalhar em África, Angola ocupava um lugar nada agradável ficando-se para os fins da lista, muito devido às imagens e notícias que chegam a Portugal, passando a constar na minha cabeça um rótulo que levava a que não sentisse curiosidade em rumar a essas paragens.
Foi em 2016 que através de um convite formulado pelo meu amigo Joaquim Santos na inauguração de uma exposição que fiz numa galeria de Leiria, conheci o Grupo Missionário Ondjoyetu e surgiu a oportunidade de me deslocar a Angola e em particular á região do Gungo para conhecer e fotografar o projeto da missão no terreno.
Aceitei o convite e em junho de 2016 pousava pela primeira vez em Luanda e rapidamente rumei a sul e ao território intervencionado pela missão.
Confesso que fiquei surpreendido por muita coisa, mas em especial por dois aspetos que me deixaram apaixonado pelo povo do Gungo e pelo projeto do grupo Missionário:
Contrariamente á imagem que tinha pré-concebida na minha cabeça e em parte criada pelas notícias que nos chegam através da comunicação social, encontrei um povo maravilhoso, afável, positivo, alegre, crente e com força e determinação em com a ajuda do grupo missionário construir um futuro melhor alicerçado na fé, nos princípios e num espírito de comunidade.
Um povo que nos contagia e à qual é impossível ficar indiferente e não ficar apaixonado.
Por outro lado, encontrei finalmente um projeto de ajuda social e humanitária baseados na palavra de Deus e da doutrina cristã, que funciona.
Contrariamente ao que tinha visto no terreno em projetos de ajuda humanitária com a qual me cruzei e na qual participei em países como o Topo, Marrocos ou Guiné-Bissau e onde organizações como a Comunidade Europeia, Unicef, Nações Unidas, etc., intervencionam e ocupam os seus recursos em estudos ou projetos muito específicos que normalmente se traduzem em disponibilizar recursos, encontrei algo de muito diferente e onde encontrei resultados:
A força de missionários, voluntários, com poucos recursos mas que com um esforço dirigido para os locais certos e para as pessoas certas fazem com que as sementes plantadas no seio de uma comunidade germinem, cresçam, floresçam e se reproduzam criando uma comunidade mais forte, com valores éticos e morais mais desenvolvidos e com esperança no dia de amanhã, com melhores condições de saúde, educação, culturais e profissionais.

A trocar ideias com o Padre David Nogueira em como construir a cruz da igreja do Calipe
Finalmente encontrei um projeto que ensina o povo a pescar em vez de fornecer o peixe ao povo. Rapidamente me deixei embalar pelos sinais do trabalho do padre Vítor Mira, pelo ritmo contagiante do Padre David no dia a dia da missão, pelos sorrisos das irmãs, pela dedicação da irmã Teresa, pelas preocupações do avozinho Filipe em relação á receção que os animais que matou e cozinhou lhe vão fazer um dia á entrada do céu, pelos cânticos do povo, pela alegria com que se reúnem na igreja e celebram a sua fé e se entregam a Deus.
Rapidamente me dediquei de corpo e alma ás celebrações, ás reuniões e me senti motivado para ajudar, para me envolver e para retribuir a graça que Deus me deu em estar ali.
A minha missão inicial era simples: percorrer as aldeias intervencionadas pela Missão, fotografar algumas pessoas, fotografar as paisagens, as aldeias. Praticamente poder-se-ia dizer que estava em turismo a visitar um país e os povos desse país. Nada mais errado. O chamamento daquela região, daquele povo fizeram com que procurasse ajudar, falar, explicar, ouvir, receber e dar e no final confesso que saí dali com um amargo de boca por sentir que recebi muito mais do que consegui retribuir.
No percurso que fizemos com o Cavalinho Branco percorrermos picadas, visitámos aldeias e seguimos um ritual que consistia em chegar á aldeia, tratar dos aspetos logísticos relacionados com a nossa estadia, visitar a igreja, reunir com os jovens, com os casais, partilhando a nossa experiencia de viver em Portugal e numa sociedade diferente e com mais recursos.
Já perto do final das nossas visitas chegámos a uma aldeia chamada Calipe. Mais tarde fiquei a saber que o nome da aldeia se deve ao facto de um dia ter existido por ali um grande eucalipto.
Esta aldeia muito bonita fica junto á base de dois montes que ao longe parecem uma enorme tartaruga.

A idealizar forma de sem grandes ferramentas ou recursos construir a cruz da igreja do Calipe
Ao chegar á aldeia fiz o que sempre fiz quando visitei as outras aldeias procurando com o olhar a igreja, local de encontro do povo para confraternizar, para celebrar as eucarísticas e local de reunião de catequistas. Esta igreja em particular chamou-me á atenção por um detalhe curioso: não tinha cruz no cimo da porta da igreja.
Nessa aldeia tive algum tempo livre e fui dar uma volta pelas redondezas explorando uns trilhos junto á picada onde encontrei algumas campas ainda do tempo da presença portuguesa nos anos 60 e 70, visitando um grupo de mulheres que na pedra moíam milho de forma a obter a farinha necessária para confecionar os pratos tradicionais que são a base da alimentação na região.
Chegado novamente ao centro da aldeia procurei o Padre David e percebi que ele ainda estava ocupado numa reunião com os catequistas pelo que fui dar mais uma volta por entre as casa, cabanas e palhotas que compunham o aglomerado.
Junto a uma casa encontrei algo que não tinha visto por ali: uma enorme cana de bambu seca que se encontrava por ali abandonada. Foi nesse momento que me lembrei que a igreja não tinha cruz! Mentalmente procurei verificar se tinhas as ferramentas necessárias para fazer uma cruz e lembrei-me que tinha visto no Cavalinho Branco uma serra, um alicate, um martelo e um pedaço de arame.
Levei a cana de bambu para junto do Cavalinho Branco, fui buscar as ferramentas e sentei-me no chão, cortando a cana, limpando e talhando um entralhes com a serra, com o meu canivete sob os olhares curiosos de miúdos e graúdos que por ali passavam e por ali ficava na expetativa de perceber o que estava eu a fazer.
Estive mais ou menos uma hora limpando, aparando, cortando, até que juntei os dois pedaços e calmamente procurei unir os mesmo com um arame que dignificasse aquele símbolo. Terminada a tarefa senti-me realizado e com a consciência que dei o meu melhor nesta que foi a forma que encontrei de oferecer a aquele povo um símbolo que faltava na sua igreja.
Acabada a construção da cruz chega ao pé de mim o Padre David que tinha acabado a reunião e falei-lhe do meu projeto e pedi-lhe que entregasse a cruz aos catequistas para que fizessem ela o que desejassem ao que me respondeu o padre David que deveria ser eu a entregar a cruz pelo que chamou o catequista Armando António que olhou para mim e para a cruz com aquele olhar que encontramos numa criança no dia de Natal ao ver o embrulho da prenda que está prestes a abrir.
O catequista Armando imediatamente chamou os outros catequistas e mais alguns homens da aldeia e nem dois minutos tinham passado eis que surge nas mãos de um deles uma escada (a única que me lembro de ter vista em toda a viagem) e quando dou por mim estava a ver um grupo de homens a colocar a cruz no topo do telhado da igreja junto á porta.
Reuniu-se o povo para admirar a obra e ficou o povo orgulhoso por a sua bonita igreja ter ficado ainda mais bonita. Confesso que o meu coração se encheu ainda mais de gratidão e admiração por este povo que consegue nas pequenas coisas encontrar grandes significados e grandes motivações para olhar de forma positiva para o futuro.
Quando vi o catequista Armando pela primeira vez houve duas coisas que me despertaram o olhar: o facto de ter um casaco da CP (Companhia de ferros de Portugal) e de o casaco estar imaculadamente cuidado e ter um aspeto de novo.
Com as conversas que mantive com o catequista Armando rapidamente percebi que estava ali um homem respeitado, um líder capaz de levar os seus irmãos, o seu rebanho a porto seguro. É umas das muitas pessoas que recordo com admiração e que me marcaram nesta viagem tendo encontrado ali uma referencia para me ajudarem a perceber o que são os valores e o espírito de entrega a uma comunidade.
Questionei o Padre David sobre a proveniência daquele casaco “novo” com a curiosidade de como tinha por ali aparecido um casaco que me lembrava de ver nos revisores dos comboios na minha juventude ao qual me respondeu que aquele casaco tinha perto de 20 anos e que tinha sido oferecido ao catequista Armando como prova da gratidão que o grupo tinha para com o seu trabalho em prol dos outros e que lhe tinham na altura explicado que o CP significada “Catequista Pai”.

A colocação da nova cruz da igreja do Calipe
Sorri e dei por mim a pensar que as coisas têm o significado que queiramos que tenham e que muitas vezes as palavras colocam em cima de nós uma responsabilidade e um sinal que nos fazem lembrar a cada momento da nossa missão.
Para o catequista Armando aquele casaco com toda a certeza lhe faria recordar sempre que o visse ou o vestisse a missão que tem para com aquela comunidade, para com aquela aldeia, para com aquele povo e para com a missão: ser uma referencia, um líder que segue na dianteira do grupo e o dirige rumo a um mundo melhor, a um futuro mais risonho e com mais esperança.
Quanto a mim saí dali dias mais tarde com a certeza que muito recebi, muito aprendi e que para todo o sempre estarei ligado a este povo. Nunca irei conseguir ver o “CP” como os Caminhos de ferro de Portugal, mas sim como o casaco do catequista Armando o pai daquele povo e o homem que recebeu das minhas mãos uma cruz que para mim timidamente significou uma forma de ocupar o meu tempo e de retribuir com um pequeno gesto o acolhimento que me deram por ali e que para aquele povo significou algo grandioso e que nos passou a unir eternamente.
A eles estou grato por me terem permitido ser um homem um pouco melhor.
Podem encontrar mais informações sobre o livro e sobre como apoiar o projeto do grupo missionário aqui: “34 000 de nós – Gungo, retratos de um povo quase esquecido”

A nova cruz da igreja do Calipe
Um projeto desenvolvido pelo fotógrafo Filipe Silva ao abrigo da iniciativa
"Living Tribes - Fotógrafos em prol de causas".
Um grupo de fotógrafos unidos pelo sentido da utilização da fotografia como ferramenta
para ajudar na consciencialização, informação e mobilização da sociedade.
Divulgar para preservar. A fotografia ao serviço da sociedade.
Podes seguir o trabalho do grupo aqui:
Página web: http://www.ondjoyetu.com/
Facebook: https://www.facebook.com/ondjoyetu
Instagram: https://www.instagram.com/grupomissionarioondjoyetu